Lisa Kemmerer – Animais e o Budismo

 

Sobre Lisa Kemmerer 

Lisa Kemmerer é professora de filosofia e religiões na Montana State University Billings. Ela é também filosofa e ativista em prol dos animais não humanos, meio ambiente e seres humanos. Ela possui pós-graduação das Universidade de Reed, Harvard, e Glasgow University (Escócia). Dr.Kemmerer escreveu e editou nove livros.

 

1. Entrevistadora Zélia Bora – Você poderia nos dizer como você se interessou pelo Budismo e por que a ética budista é ideal para pensarmos a relação entre os humanos e não humanos?

Entrevistada Lisa Kemmerer – Desde meus primeiros anos eu me interessei por religião e pela fé. Eu fiquei fascinada logo que ouvi os primeiros sussurros sobre o Budismo. Quando eu cresci e cheguei à universidade, minha vontade de aprender não pôde ser satisfeita em uma era sala de aula convencional – eu queria visitar países onde eu pudesse ver as religiões orientais, especialmente o Budismo. Trabalhei muito e arduamente para ganhar dinheiro suficiente para viajar para a Ásia.É claro que as viagens apenas aumentaram meu interesse pelo Budismo: quanto mais eu via, mais eu queria saber. Eventualmente,eu vivi e estudei em uma comunidade budista em Dharamsala, na Índia. Eu também trabalhei com budistas tailandeses no Alasca. Que pessoas maravilhosas!

Eu nunca diria que uma religião é ideal – todas as religiões são belas. É somente como as religiões são praticadas que causam problemas em nosso mundo. No que diz respeito aos animais, é verdade que as religiões da Índia são particularmente fortes nos ensinamentos que trabalham contra a exploração e a opressão. Porém é importante notar que todas as religiões ensinam compaixão, o serviço para com os necessitados e a simplicidade, o que teoricamente deixaria espaço no planeta para todas as espécies da natureza.

A Índia desenvolveu a ideia notável de reencarnação. Todas as religiões buscam responder perguntas “não respondidas” – de onde viemos?  E para onde vamos? Por que nós sofremos? e reencarnação parece uma resposta particularmente bonita para a questão de onde viemos e para onde vamos, uma vez que a reencarnação explica o que nos acontece entre as vidas. O que é relevante de acordo com a reencarnação é que ela nos coloca a todos como parentes. Não há um ser vivo que não outrora amamos que não tenha uma alma. Uma vez conhecendo essa verdade profunda protegeríamos com as nossas próprias vidas. Claramente, essa perspectiva nos encoraja a tratar todos os seres vivos como parentes – porque eles são nossos parentes.

Existem outros ensinamentos poderosos e amigáveis sobre animais na tradição budista, incluindo as ideias da “Natureza de Buda”, que afirma que todo ser vivo é perfeito em si mesmo. A compaixão é fundamental para o papel dos bodhisattvasassim como ahimsa, mettaekaruna[1] que encorajam a bondade e a compaixão. Elas situam-se no centro da ética budista. Anatta [2]nos lembra que, à luz está em mudança constante, não há um “eu” fixo, o que promove um equilíbriodas tendências egoístas, e finalmente levando ao  primeiro preceito budista: não matar. Este preceito não é minimizado e restrito, mas objetivo e conclusivo.

 

“Nós somos os únicos que temos o poder para mudar nossos hábitos de consumo. Nós somos os únicos que financiamos as mortes dos animais ou boicotamos os produtos derivados de animais”

(Trecho do livro Speaking Up of Animals) 

 

2. Z. Como você se “dialogou” (com as culturas oriental e ocidental) para finalmente adotar a ética budista de uma “rede interconectada de inter-relacionamento”?

L. Acho que qualquer um que seja profundamente espiritual manterá os valores da compaixão, simplicidade e serviço em seu âmago. O que o Budismo oferece é uma atualização desses princípios fundamentais – uma diferente racionalidade e motivação, e uma expressão diferente. Por exemplo: todas as religiões ensinam compaixão, mas são compassivas porque são baseadas nas  lei de Deus ou porque todos os seres possuem a alma de Brahmin[3], ou porque é um ensinamento fundamental do fundador? ou ainda, alguém é compassivo à luz do karma, em prol da salvação eterna, ou porque você vê Deus ou a ”Natureza de Buda” em outro ser? Eu sou uma acadêmica então raramente expresso meu ponto de vista, mas posso dizer que estudar religiões me proporcionou uma compreensão rica das possíveis razões pelas quais a compaixão é moralmente importante.

A teia interconectada é semelhante – todas as religiões fornecem algum senso de interconexão, seja através da mão do criador (tradições judaico-cristãs-islâmicas), ou através da reciclagem da matéria (taoísmo ancestral), ou através de um universo em constante mutação onde ação e reação são vistos através de um plano espiritual, como no Budismo. O que eu amo nas tradições Budistas é o sentido de um universo interconectado, vibrante e vivo. Essa ideia de interconectividade não é apenas uma possibilidade filosófica, mas uma realidade nos olhos, nos corações e nas mentes da maioria dos budistas, como com a maioria dos hindus e jainistas. 

3. Z. Como professora de filosofia e religião, você poderia explicar o conceito do Divino unicidade presente em todas as religiões?

L. O conceito do Divino e Unidade é central para todas as religiões. Nas tradições judaico-cristãs-islâmicas, o Divino surge do reconhecimento de que tudo deriva da mão de um Criador que criou um mundo vegano e que permanece inerente em toda a criação. As tradições religiosas asiáticas tendem a oferecer uma abordagem menos teísta e mais filosófica ao divino e à unidade. Por exemplo, a ideia hindu de Atman = Brahman [4], que é expressa na saudação, “Namaste” – “Saúdo Deus em você”, ensina que a alma de Brahmin (que mais facilmente se traduz como Deus) habita em todos os seres vivos, e que a alma de todo ser vivo habita em Brahmin. Nas tradições taoístas, o Tao reside em todos e dita tudo, e quando perecemos, nossas partes se tornam as partes de outros seres: estamos literalmente, fisicamente unidos e interconectados. A tradição confuciana ensina que todas as mentes derivam de uma fonte,única.Todas as mentes são uma. A reencarnação fornece uma compreensão da unicidade e unidade: todos os seres são parentes. O rato que anda pelo chão e o frango mastigado pelos onívoros já foi minha mãe, meu irmão e meu melhor amigo.

A concepção de unidade é espiritualmente importante porque a religião, desde seus primórdios, tem sido um compromisso coletivo. O significado subjacente de religião deriva de um termo que significa “unir” – as religiões unem as pessoas. E no processo de lembrar as pessoas de que fazem parte de uma comunidade maior, as religiões também lembram que somos parte de uma comunidade maior. Muitas tradições indígenas permaneceram com essa ideia desde o passado nebuloso e distante até os dias atuais, incluindo histórias de uma Grande Paz que antecederam os dias de caça, quando todas as espécies viviam juntas como uma só comunidade. Os quéchuas[5] dos Andes falam do ayllu, que é uma comunidade interespécie que incluía animais e plantas de todos os tipos e mesmo a própria terra. Todos os membros desta comunidade são reconhecidos como importantes e como fundamentalmente iguais. Esta é outra visão de unicidade e unidade onde o mundo é reconhecido, literalmente, como comunidade.

 

“Se levarmos em consideração as grandes religiões do mundo, se temos integridade para com os seus ensinamentos, podemos e devemos rejeitar a exploração animal e todas as suas formas insidiosas” 

(Trecho do livro Animals and World Religions) 

 

4. Z. Em seu artigo: “Ética Budista: compaixão por todos os animais”, você diz que “o budismo oferece uma visão de inter-identificação radical”. Você pode explicar como esse conceito pode nos levar ao respeito à natureza e aos animais, e como esses conceitos podem nos ajudar a nos tornar seres humanos melhores?

L. A ideia de inter-identificação radical que foi desenvolvida no Budismo Mahayana na China, particularmente através da escola de Huayen, explica que não é nada mágico quando o cérebro capta os significados mais profundos. Quando entendemos que um tripé só pode ficar de pé com três pernas, e que isso leva ao entendimento de que cada perna do tripé é o tripé (porque o tripé não existiria sem cada perna), então começamos a ver (entender) a inter-identificação radical. Quando vemos que um tripé não pode existir sem cada perna, podemos entender que nada pode ser como é sem que todas as coisas sejam como elas são. Quando você remove uma perna, você não tem mais o tripé. Da mesma forma, quando você remove uma espécie, você não tem mais o mesmo mundo, e quando você remove um pequeno sapo da beira de um lago, você perde o sapo e o ecossistema e quando expandido para fora, você vê que o universo é alterado por essa perda. Assim como eu não sou a mesma pessoa sem um dos meus dedos, a Terra não é a mesma sem um de seus sapos.

Outra imagem de inter-identificação radical deriva-se da “Teia de Indra”, outro belo conceito da Índia, em que diamantes em cada intersecção no tecido de uma vasta rede, que se estende pelo universo, reflete todos os outros diamantes em uma regressão infinita. Isso mostra a interdependência de cada diamante em todos os outros diamantes e, finalmente, o vazio de qualquer existência individual. Podemos imaginar isto em termos científicos através de conceitos como a evolução – estamos aqui apenas através do processo de bilhões de anos de seres e tempo. Podemos também imaginar isso em microcosmos, em que há bilhões de seres que vivem dentro de nós e consistem em átomos que são principalmente ar, e nossos corpos se transformam completamente a cada sete anos – onde, está então o indivíduo?  Não somos os mais importantes. Somos uma das muitas partes de um todo maior.

Esses ensinamentos têm um elemento muito prático para reformular nosso senso de identidade em um mundo maior. A cascavel também é um todo por muitas partes, e também uma pequena parte do todo maior – ao lado de nós e de todas as outras espécies. Vemo-nos contextualizados. Vemo-nos como contexto. Reconhecemos como somos juntamente com muitos outros animais, uma forma temporária com um tempo de vida muito curto, e a questão de como viver é colocada num contexto humilde, num contexto integrado. Mas nosso papel também é elevado. Nós refletimos infinitamente todas as outras coisas, mesmo quando somos infinitamente refletidos. Nós não somos o supremo, mas apenas uma parte, mas temos a nossa parte neste universo integrado.

A arrogância humana prejudica os animais e a natureza. A arrogância surge quando deixamos de ver quem somos – vulneráveis primatas quase sem pelos, dependentes de todos os outros seres e dependentes da Terra.

 

“Nós estendemos a nossa ética para nós mesmos, nossa família, comunidade e toda humanidade. Agora somos chamados para estendermos a nossa consideração moral a outras espécies. 

( Trecho do livro In Search of Consistency)

 

Montana, 08 de novembro de 2018.

 

Notas dos tradutores para a versão da entrevista em língua portuguesa. 

[1] Amimsa, Metta,Karuna e bodhisattvas são palavras em sânscrito que  significam respectivamente;Ahimsa- não violência. Metta Amor universal e bondade e Karuna compaixão. MettaBhavanameditation é uma pratica que ajuda a desenvolver-se uma atitude de amor a todos os seres vivos. Biddhsattvas, aspirante ao Nirvana.

[2]Annata (Pali) Anatman (sânscrito) é uma doutrina que afirma que não há para os humanos uma substancia permanente chamada alma. Ao invés disso, o indivíduo é composto por cinco fatores (palikhandra) (khandra sânscrito que está em permanente movimento.

[3] A palavra Brahmin aqui é utilizada em seu sentido metafórico ou seja, de que todos possuem a alma de guardiões do sagrado.

[4]Atman, traduzida de forma geral significa alma ou a alma individual. Atman é imortal e eterna. Brahman é a alma do Universo, a alma cósmica. A essência eterna do Universo. A mais elevada divindade. Afonte de vida que emana em  todos os seres. Aquele que foi, é e será no Universo. 

[5] Povos indígenas do Peru e Bolivia que falam o quechua. 

 

Tradução para Língua Portuguesa/Translation to portugese language: 

Willian Dolberth e Zélia M. Bora  

Revisão do texto em português/ Review of the text in Portuguese: 

Evely Libanori   (Universidade Estadual do Paraná)

Equipe ASLE-Brasil para essa entrevista/ ASLE-Brasil team to this interview: 

Antonio Felipe B. Neto – Suporte Técnico/Technical support ( Universidade Federal da Paraíba) 

Willian Dolbert (Universidade Federal do Paraná)

Yuri Molinary (Universidade Federal do Paraná)

Zélia M. Bora( Universidade Federal da Paraíba)

 

 

 

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