Entrevista com Corrine Pelluchon

 

 

Professora Titular de Filosofia na Universidade de Paris-Est-Marne-la-Vallée, Autora de vários ensaios em filosofia política e ética aplicada (ética médica, ética animal, ética ambiental). Entre os ensaios:L’autonomie brisée. Bioéthique et philosophie, PUF, 2009; Éléments pour une éthique de la vulnérabilité. Les  hommes, les animaux, la nature, Le Cerf, 2011; Les Nourritures. Philosophie du corps politique, Le Seuil, 2015, Nourishment. A Philosophy of the political Body ( Bloomsbury 2019, fortchoming in German in the Fall 2020) ;Manifeste animaliste. Politiser la cause animale, Paris, Alma, 2017 ( Translated into Italian , Korean and Spanish ; forthcoming in Greek and German in 2020) ; Éthique de la considération, Seuil, 2018( Ethik der Wertschätzung. Tugenden für eine ungewissene Welt, WBG, 2019) ; Pour comprendre E. Levinas. Un philosophe pour  notre temps ( Seuil, January 2020) ; Réparons le monde. Humains, animaux, nature, Rivages/Poche. Ela recebeu vários prêmios e, mais recentemente, na Alemanha, o prêmio, Günther Anders Price pelo  pensamento crítico em todo o seu trabalho. Link :www.corine-pelluchon.fr

 

1 ZB: Corine, seus primeiros estudos sobre filosofia vão de Franz Rosenzweig, Heidegger, Gershom Scholen e Leo Strauss. Você pode nos dizer por que você decidiu mudar para o campo dos estudos humanísticos sobre animais?

CP. Escrevo sobre animais desde 2009. Em L’Autonomie brisée. Bioéthique et philosophie (The Broken Autonomy. Bioethics and Philosophy, PUF, 2009), existem cerca de 70 páginas dedicadas à questão. No entanto, é verdade que comecei minha carreira acadêmica por meio dos estudos de política. Há 18 anos, fiz meu doutorado sobre o pensamento de Leo Strauss, concentrando-me em sua crítica ao Iluminismo, à crise da racionalidade contemporânea e à fragilidade da democracia (trabalho publicado em 2005) na França e traduzido para o inglês em 2014. (Suny Press). Em meados dos anos 2000, os desafios sobre questões bioéticas, biotecnologias e críticas ao nosso modelo de desenvolvimento tornaram-se eixos de discussão tanto para a antropologia quanto à democracia.Esses assuntos tornaram-se temas de minhas pesquisas. A filosofia do sujeito que fundamenta o liberalismo político atual não poderia fornecer ferramentas suficientes ou orientação adequada para nos ajudar a resolver esses desafios e promover uma resposta democrática a essas questões. Tentei prover uma filosofia do sujeto que considerava nossa vulnerabilidade, e não apenas nossa capacidade de fazer escolhas autônomas.Inicialmente considerei minhas reflexões sobre pessoas que sofrem de deficiências cognitivas e sobre os animais como uma maneira de testar nossas categorias éticas e políticas. Eu sou vegetariana desde 2003. Durante um ano, de 2007 a 2008, passeitrês dias por semana visitando pacientes com doenças de Alzheimer. Visitei unidades de terapia intensiva e conversei com profissionais de saúde. Foi uma ótima experiência.Aprendi muito com eles. Quando chegava em casa, antes de escrever meu livro (L’Autonomie brisée), assistia vídeos sobre animais em fazendas industriais, laboratórios e matadouros. Eu realmente queria saber o que estava acontecendo nesses lugares. Inspirada na fenomenologia da passividade de Levinas, construí o que chamei de “ética da vulnerabilidade”. Ela gira em torno de três categorias principais: autonomia, responsabilidade e vulnerabilidade. A ética da vulnerabilidade leva em consideração a vulnerabilidade que compartilhamos com os outros seres sencientes e enfatizanossa responsabilidade específica sobre as futuras gerações.A natureza e os animais propuseram uma filosofia do sujeito que poderá renovar as nossas formas de entendimento sobre nossa condição e a nossa relação com os outros, incluindo os animais que dão nascimento a esse entendimento sobre o Estado e seus objetivos. 

Este último, não poderá mais ser reduzido à segurança entre os seres humanos e à redução das desigualdades. Na minha abordagem, a maneira como tratamos os animais lança luz sobre nós; e nos obriga a examinar criticamente os fundamentos de nossa ética e política. Não pode haver uma renovação do humanismo sem levar em consideração os interesses dos animais. Tornei-me cada vez mais comprometida com a questão dos animais e sempre há um capítulo sobre animais nos meus livros, Éléments pour une éthique de la vulnérabilité. Les homes, les animaux, la nature (Cerf, 2011); The Case for an Ethics of Vulnerability: Humans, animals, nature), in Les Nourritures. Philosophie du corps politique ( Seuil, 2015); Traduzido para o Inglês: Nourishment. A Philosophy of the Political Body, Bloomsbury, 2019);em Éthique de la consideration ( Seuil, 2018) – The Case for An Ethics of Consideration). Éléments pour une éthique de la vulnérabilité. Les homes, les animaux, la nature (Cerf, 2011); The Case for an Ethics of Vulnerability: Humans, animals, nature), in Les Nourritures. Philosophie du corps politique (Seuil, 2015; translated into English : Nourishment. A Philosophy of the Political Body, Bloomsbury, 2019); in Éthique de la consideration (Seuil, 2018); The Case for An Ethics of Consideration).Escrevi o Manifesto (Manifeste animaliste. Politizer la cause animale, Alma, 2017, traduzido para espanhol e italiano em 2018, em coreano em 2019) para fazer as pessoas mudarem de ideia e de hábitos e entenderem que a questão animal diz respeito a todos, incluindo aqueles que ainda comem carne ou exploram animais. Eu também queria tornar essa causa política, fornecendo as ferramentas adequadas para que possamos aliviar o sofrimento do animal e até promover um futuro em que não haja exploração animal.

 

2. ZB: Corine, seu Manifeste Animaliste é para mim uma das mais belas declarações sobre a condição Animal, escritas desde o L’Animal que donc je suis, de Derrida (O Animal que logo sou). Qual a influência de Derrida sobre o seu trabalho?

CP: Colocando em questão a maneira pela qual a tradição filosófica ocidental costuma pensar sobre os animais, Derrida lança luz sobre a violência de um humanismo baseada em uma concepção elitista do humano, abrindo caminho para outros tipos de discriminação, como o racismo e o sexismo. Esse estágio da filosofia, que acompanha a compreensão da vulnerabilidade animal como um nãopoder (non-power) (em vez de focalizar na capacidade de sentir dor e sofrimento)depende de habilidades cognitivas é inspirador. No entanto, não pretendo apenas denunciar a natureza arbitrária das fronteiras morais traçadas entre animais e seres humanos, como Derrida fez. Retiro dele a ideia de que em nossas relações com os animais há uma guerra contra nós mesmos: nossas relações com os animais colocam à prova nossa capacidade de experimentar o destino compartilhado que nos conecta a outros seres vivos. Eles revelam nossa dificuldade de aceitar a alteridade. Não é meramente uma luta contra os animais, mas também uma luta contra e dentro de nós mesmos. É por isso que a questão animal é central: é importante por si só porque os animais sofrem, mas também porque a violência que infligimos sobre eles testemunha o desprezo que temos por seres que consideramos inferiores ou simplesmente diferentes nós.No entanto, optei por enfatizar a dimensão construtiva da desconstrução de Derrida ou sua crítica ao humanismo: como podemos imaginar um Estado em que os animais contam. Como poderia ser uma ética e uma política que partem da vulnerabilidade e levam a sério nossa responsabilidade para com os outros seres? Meu principal objetivo como filósofa política é tornar a questão animal política, determinando as regras de uma sociedade que realmente leva a sério os interesses dos seres humanos e não humanos. Vem de uma filosofia do sujeito que está ligada a uma nova concepção do ser humano. Certamente, nossa corporalidade, nossa vulnerabilidade e nossa condição de seres engendrados, nossa necessidade de ar, água, comida e espaço destacam o caráter fundamentalmente relacional do assunto, como mostrei em Nourishment, que é o livro que fundamenta minha abordagem política sobre a questão animal. Tal filosofia da corporalidade leva os seres vivos ao coração da ética e da justiça.

Por fim, eu acho que estamos numa encruzilhada: embora a situação dos animais hoje seja um pesadelo, há cada vez mais pessoas que não suportam a violência que infligimos a eles e a injustiça que isso reflete. Nossas relações com os animais são o espelho de um modelo de desenvolvimento que se baseia na exploração ilimitada da natureza e dos seres que nos desumaniza. A causa animal é estratégica, pois destaca as aberrações do capitalismo e levanta questões civilizacionais. É por isso que falo de uma nova era que poderá surgir: a era dos vivos, que conecta a aceitação de nossa vulnerabilidade e responsabilidade, levando em consideração as questões levantadas pelas mudanças climáticas e a causa animal. Na verdade isso implica no restabelecimento da ética e da política com base em uma filosofia do sujeito que inclui necessariamente a questão animal dentro de um projeto de reconstrução social e democrática. Essa articulação entre antropologia e política abre caminho para uma plataforma que nos permite delinear as condições de uma convivência justa entre humanos e animais – uma convivência que é o nosso futuro, tanto a curto quanto a longo prazo. Como você vê, essa abordagem da questão animal vem depois da ética animal e mesmo depois da abordagem de Derrida, pois o objetivo é construir um novo futuro e até mostrar que o animalismo requer um novo futuro e até mostrar que o animalismo requer um novo humanismo.

 

3.ZB: Em “Manifeste” você diz que: “O Humanismo está perdendo a sua alma.” As imagens da opressão animal e a insuportável dor abrem o Manifesto. Você também diz que os sentimentos das mulheres podem lutar contra essa exploração.Você pode explicar como os seres mais despossuidos na sociedade podem ajudar outros igualmente despossuidos?

CP: “A humanidade está perdendo sua alma”, porque ninguém pode negar que os animais sofrem e, no entanto, continuamos a explorá-los. Entretanto, a maioria das pessoas usa dispositivos estratégicos, como dissonância cognitiva, para poder continuar trabalhando em matadouros ou comer carne, por exemplo. Essa é a maneira de reprimir as emoções negativas para tornar as pessoas indiferentes. Eles também se acostumaram a separar os seres a quem concedem consideração moral porque gostam deles ou pertencem à família e aos outros. Mas,ao contrário, é necessário abrir-se os olhos e encarar a realidade.Tomar consciência do sofrimento dos animais nos diferencia dos outros. Este é primeiro  pesadelo. Ao nos sobrecarregarmos com o sofrimento dos animais, sentimos uma dor tremenda que nunca diminui, mas que de alguma forma se intensifica com o passar dos anos. No entanto, é essencial viver esse sofrimento e transformá-lo da seguinte forma: precisamos ser fortes o suficiente para permitir que esse sofrimento nos penetre sem nos contaminar e dessensisibilizarmos pela violência que o causou. A separação de outros seres humanos que continuam cegos a essa realidade não deve gerar desprezo. Devemos lembrar a nós mesmos que também fomos alheios ao sofrimento dos animais durante muitos anos. Na maioria das vezes, são outras pessoas – ou uma organização, um livro ou um documentário – que nos permitem encarar a verdade. Aqueles que estão comprometidos com o alívio do sofrimento dos animais precisam pensar sobre como podem ser úteis para os animais. Temos que convencer os outros a mudar suas maneiras de pensar e seu estilo de vida, mas não teremos sucesso se simplesmente os acusarmos. O objetivo é mostrar como é possível viver sem impor sofrimento a outros seres e convencer os demais de que uma sociedade mais justa com os animais será também mais justa com os outros seres humanos e também pode levar à prosperidade econômica graças a inovações no mundo, na indústria da moda, em alimentos, em experimentação.    Mas é verdade que não há um dia de folga para os animais que são abusados ​​nem para os que sofrem por eles. Tomar consciência do sofrimento do animal, do número de seres sencientes que são mortos todos os dias por sua carne ou pele, não é fácil. Talvez as pessoas que percebem a intensidade dos sofrimentos dos animais sejam aquelas que já foram feridas e sofreram na carne. Ser capaz de olhar para tal violência, sentir-se profundamente envergonhado por ser um ser humano e decidir lutar para aliviar o sofrimento deles é fornecer as ferramentas para uma revolução que mudará nosso modelo de desenvolvimento, é fazer algo que otorna refém da causa animal. Se você tem ambições pessoais para a sua carreira, se deseja ter uma vida tranquila, esse não é o caminho certo! Mas nós não escolhemos. Para mim, a questão animal está sempre no meu coração. Eu sempre penso em animais. Talvez essa capacidade de sofrer por eles se deva ao fato de que muitos outros objetivos que muitas pessoas consideram importantes não sejam tão importantes para mim. Sofrer pelos outros seres que não pertencem à nossa espécie e sentir pena (o que implica que você sente o vínculo profundo que o liga a todos os seres sencientes) é uma tipo de tomada de consciência semelhante a um tipo de “nudez”. Quero dizer que você não pode sentir essa experiência se ainda não se livrou dos hábitos sociais que geralmente constituem uma identidade pessoal. A experiência de si mesmo como um eu vulnerável, engendrado e mortal é muito importante. Talvez algumas mulheres sejam mais sensíveis a isso, mas são as únicas. Sei que alguns filósofos insistem no elo entre feminismo, antiespecismo e luta contra todas as discriminações. Eu concordo com essa abordagem. No entanto, aminha é um pouco diferente. 

 

 

4. ZB:Como a religião formal pode ajudar? Quão importante é mudar corações e mentes? Como podemos ser mais compassivos com os animais?

CP: Nossas relações com os animais refletem nossas relações conosco mesmos. Para entender o que estamos fazendo com os animais hoje, não devemos apenas denunciar o mal ou tratar de seus sintomas, mas também devemos chegar à raiz do problema, que vai além da questão animal e abrange nossas relações com outros seres humanos e outras nações.Está relacionado à maneira pela qual concebemos nossa condição e aceitamos nossa finitude e nossa vulnerabilidade. Esses argumentos também não são suficientes para fazer as pessoas mudarem seus estilos de vida e hábitos. Nós também temos que movê-los. No entanto, penso que a maneira como entendemos e sentimos a nossa responsabilidade em relação aos outros seres, especialmente em relação aos animais, requer um processo profundo de autotransformação que engloba representações, emoções e se refere também a construções arcaicas.Para parar de nos comportarmos como se fôssemos “um império dentro de um império”, como disse Spinoza, é necessário entender os laços que nos ligam uns com os outros como um todo. Essa compreensão do nosso lugar na natureza muda de dentro do sujeito e dá origem ao desejo de qualidade, não de quantidade, como disse Arne Naess, grande filósofo e grande leitor de Spinoza, quando falou em “ecosofia”. O desejo de ter poder sobre os outros, de exercer domínio, desaparece e é substituído pelo desejo de viver bem com os outros e por emoções positivas (gratidão, alegria). Em vez de colocar tigres ou elefantes na gaiola, ficamos felizes em vê-los florescer de acordo com suas próprias normas e subjetividade.

Em meu último livro, Ethics of consideration, desenvolvi uma ética da virtude que descreve os estágios de um processo de autotransformação que poderia explicar que o florescimento dos outros seres pode fazer parte do florescimento de pessoal de alguém. Denomino essa experiência de “transdescendência”. Essa palavra, que foi cunhada por Jean Wahl e também encontrada em Levinas. Ela não descreve um movimento de baixo para cima, como fé em Deus ou contemplação (transascendência). No entanto, é uma maneira de falar de algo que nos vence: é a experiência do mundo comum que é infinita e envolve as gerações passadas, presentes e futuras, as instituições e as outras espécies. Quando lembramos nossa condição de engendrado e experimentamos nossa vulnerabilidade, sentimos melhor os laços que nos ligam a outros seres engendrados e vulneráveis.              

A transdescendance (trandescendência), na verdade, descreve um movimento de aprofundamento de si mesmo e da condição carnal que permite ao sujeito experimentar o vínculo que o une a outros seres vivos. Essa experiência transforma a consciência de pertencer ao mundo comum em um conhecimento vivido que muda de dentro da maneira de ser e de interagir com os outros. A “considerátion” (consideração) é equiparada à transdescendance (transdescendência), pois essa experiência do incomensurável em nós aumenta o eu e, ao mesmo tempo, faz com que ele entenda seu lugar no mundo. Também nos leva a estabelecer limites ao nosso direito de usar o que nos agrada pelo bem dos outros. “Consideração” implica que nossa existência está entrelaçada com a existência dos outros e que não vivemos apenas para nós mesmos. É uma maneira de conectar ética e espiritualidade, mas não se precisa de Deus[1].Supõe-se quefazemos uma experiência. Nossa corporalidade é o ponto de partida desse novo entendimento de si mesmo como parte de um mundo comum que envolve animais. É claro que as pessoas que acreditam em Deus também podem falar de Francisco de Assis, que diz coisas maravilhosas sobre animais e também sobre a morte, em nossa aceitação da mortalidade, mas, como disse Leo Strauss, o filósofo, mesmo que eleacredite em Deus, nãoé para impornenhuma fé em seu trabalho. Essa é uma questão de método. Seja como for, o respeito pelos animais não deriva (apenas) de argumentos ou regras, embora precisemos de leis e normas. Para fazer as pessoas mudarem sua maneira de se comportar com os animais e seus estilos de vida, para incentivá-las a comer cada vez menos carne e peixe, precisamos abordar suas mentes e seus corações e fazendo-as sentir que são membros de uma comunidade maior que sua família e país. O trabalho dos filósofos é também descrever essas experiências, atualizar a maneira como as pessoas pensam a sua condição humana e fornecerem orientações adequadas para promoverem outro modelo de desenvolvimento que o atual, que leva ao aquecimento global, àdesumanização, àsguerras, a pobreza e torna avida dos animais vivos em um inferno.

[1]Da ideia de Deus (pela tradutora). 

 

Revisão do texto em português

Evely Libanori   (Universidade Estadual do Paraná)

Zélia Monteiro Bora( Universidade Federal da Paraíba)

Equipe ASLE-Brasil para essa entrevista

Antonio Felipe B. Neto – Suporte Técnico (Universidade Federal da Paraíba) 

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